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COMPARANDO DOIS PERFIS

DIÁRIO DE CAMPO
 

Este “experimento social” realizado num site de relacionamentos procurou discutir, a partir de duas mulheres imaginárias, com o mesmo perfil psicológico, mas de aparência e classes sociais distintas, o que conta mais, para os homens, na escolha de uma parceira: beleza ou nível social? As duas personagens tinham exatamente a mesma personalidade “razoável” (segundo padrões sociais e de senso-comum de razoabilidade), mas uma delas será rica e feia, e a outra, pobre e bonita.

 

A visão pode ser considerada estritamente cínica, por ignorar uma série de outros fatores que influenciam a decisão, mas levantava uma série de questões referentes aos valores dominantes, bem como aos reflexos da mentalidade que marca essa época em que o virtual superou o real na vida da grande maioria. Na procura do fator determinante de escolha, foram abordadas questões como escolaridade, bairros de residência, faixa salarial, carreiras profissionais mais “valorizadas” no mundo dos relacionamentos, entre muitas outras.

 

 

Foram investigados apenas os usuários de um determinado site, comparando as diferentes ocorrências em apenas um nicho delimitado de pessoas. Em resumo, esse projeto se propôs a tentar descobrir, no Par Perfeito, o que, exatamente, aumenta a possibilidade dessa perfeição de um par: aparência ou dinheiro?

 

 

 

Criando as personagens

Bem, para ajudar a responder a pergunta acima, surgiram Mônica e Maryana, os dois perfis falsos. Mônica, 28 anos, é uma engenheira civil que mora no Leblon. Pós-graduada, ganha um bom salário em uma multinacional, pela qual passa 50% de seu tempo fora do país. E mesmo não tendo o padrão de corpo desejado pela maioria das mulheres (sua pele é muito branca, está acima do peso e tem o rosto arredondado), sua maior rival ainda é desconhecida, apesar de ser um produto da ditadura da beleza imposta pela sociedade: Maryana. Também com 28 anos, e moradora de Vila Valqueire e dona de uma beleza óbvia, ela divide o apartamento com sua mãe, trabalha como vendedora em uma loja de roupas e passa boa parte de seu tempo na academia ou saindo com os amigos no Rio de Janeiro.

 

Mas, apesar das gritantes diferenças apresentadas acima e de sua aparente rivalidade, Mônica e Maryana têm muito em comum: ambas são solteiras, gostam de homens com as mesmas características, pensam em ter filhos em um futuro distante, procuram relacionamentos sérios. Ah, sim! E são imaginárias. As duas são perfis falsos, infiltrados no site brasileiro de relacionamentos “Par Perfeito”, representando os dois pólos opostos de aspectos que, na sociedade consumista e superficial de hoje, são bastante significativos na escolha de um parceiro: renda e atributos físicos.

 

O perfil psicológico era fácil, e o momento da criação das personagens, apesar da dificuldade inicial, foi o mais divertido de todo o processo. Após a escolha das características que seriam contrapostas – atributos físicos e poder financeiro –, era hora de “montar” Mônica e Maryana e lançá-las no mundo virtual.

 

 

Foi muito difícil começar. Os nomes, as atividades, o endereço, os hobbies, nada disso parecia crível o bastante no plano teórico (como ainda não me parece até agora, na verdade), o que não é de todo surpreendente, visto que Mônica e Maryana são realmente fictícias. Eu precisava de novas opiniões, e diferentes perspectivas, que transformassem as duas personagens em pessoas verídicas. Assim, foi apenas com a ajuda de dois amigos, de uma noite chuvosa, de uma casa sem pais, e de muita cerveja, que Mônica e Maryana saíram do papel para entrar na web.

 

 

O cadastro para criação de uma conta no site era surpreendentemente completo, e se desdobrava em múltiplas abas de informações pessoais, profissionais, desejos, preferências, planos, entre muitas outras coisas. E apesar de que os dois perfis psicológicos seriam praticamente iguais, sendo as únicas diferenças entre as duas as informações a respeito de tipo físico e renda – e o que mais fosse uma decorrência direta desses dois fatores –, ainda assim, era muito trabalho descrevê-los, e, muito provavelmente, eu não teria tido paciência para fazê-lo se não fossem os meus amigos (e a cerveja...).

 

 

Preenchemos todos os dados, duas vezes, e fizemos as alterações necessárias. Mas durante esse processo, é até um pouco vergonhoso admitir isso, nós três despejamos nas duas “mulheres” todo o nosso sarcasmo, bem como nossos preconceitos e estereótipos, em relação aos mais diversos aspectos físicos e sociais das duas garotas que inspiraram a escolha das fotos. Não foram raros os comentários do tipo “ah, gorda diz isso”, “pobre tira foto assim”, “escreve isso aí errado”, “coloca um ‘y’ no nome dela”, entre outros igualmente pejorativos, que, aliás, eu provavelmente não deveria estar admitindo.

 

 

A escolha dos avatares de Mônica e Maryana foi relativamente simples. A idéia original era lançar uma busca no Google com os termos “mulher feia” e mulher “bonita”, mas isso acabou sendo óbvio demais, ou ainda excessivamente exagerado. Por mais que eu quisesse que as características físicas fossem realmente contrastantes, era igualmente necessário que fossem plausíveis. Até porque não seria crível que uma menina extremamente bonita estivesse solteira e dependendo de encontros virtuais para ter relacionamentos amorosos. Assim como também era fundamental que a menina feia tivesse uma chance (ainda que fosse a menor chance possível quando comparada a Maryana) de atrair o interesse de alguém. Desse modo, descartada a busca por imagens no Google, começamos a pensar em conhecidas, que provavelmente não teriam – e, espero, não terão – acesso a esse material.

 

 

O resumo da saga pelas imagens: Maryana é tupiniquim, ex-estudante da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e, segundo minhas fontes devidamente alcoolizadas, e de maneira bastante delicada (comparado com o que realmente ouvi delas), uma pessoa “não muito legal”; e Mônica, por sua vez, vem de um país da Europa Oriental, e é, na verdade, uma menina extremamente simpática e inteligente que conheci em um albergue em Barcelona. E, assim, as duas personagens estavam finalmente completas.

 

 

Mas, antes de terminar essa parte da narrativa, algo que talvez seja o mais interessante destacar: escutei uma frase de

um dos meus amigos, já ao final de todo o “trabalho” e de várias cervejas. Quando finalmente saímos do computador, ele olhou para mim e disse algo que eu tinha escutado antes de maneiras mais sutis: “Ah isso é legal e tal, mas você sabe que isso é muita perda de tempo, né? Todo mundo sabe que homem, ainda mais com essas paradas na internet, só quer

mesmo uma coisa!”

 

 

O dilema moral (e a mudança de perspectiva)

 

A princípio, eu estava muito animado com a idéia toda do projeto, com as personagens inventadas, com as possibilidades de descoberta de um novo mundo de relacionamentos amorosos. E as perspectivas também eram muito boas: em menos de 24 horas após seus perfis terem sido ativados e as fotos dos avatares aprovadas, Maryana recebia sua primeira mensagem. O conteúdo, hoje indisponível, uma vez que o perfil de Maryana foi apagado pelo site, vinha de um usuário chamado Paulo, de 40 e poucos anos, que escreveu o seguinte:

 

“Olá! Então, essa é a primeira vez que escrevo uma mensagem desse tipo. Nunca imaginei que procuraria uma pessoa por meio de um site como esses, mas muitos amigos me disseram que desse uma chance. E como coragem parece ser a palavra de ordem, em muitos aspectos da minha vida no momento, resolvi arriscar e tentar um contato. Se também se interessar, gostaria de marcar uma conversa em particular. Meu contato é XXXXXX”.

 

A mensagem de Paulo, a única que tenho hoje, porque tinha iniciado uma tabela para registrar cada contato, mesmo não sendo ouvida, me transmitiu muita solidão e tristeza, e me despertou para um lado novo da pesquisa que eu ainda não havia cogitado. Estávamos brincando com os sentimentos das pessoas com as quais interagimos. É certo que existem pessoas que se valem de recursos como sites de relacionamentos apenas com fins sexuais; mas também existem pessoas vulneráveis, solitárias, carentes, que se expõe de maneira indiscriminada em um mundo virtual. Pessoas que, como qualquer um de nós, sofrem a cada rejeição. E que criam expectativas, tentando preencher o vazio que a própria realidade de suas vidas amorosas, por impossibilidade ou incapacidade, deixou.

 

Talvez esse não fosse o caso de Paulo. Ele poderia muito bem ser um homem de meia idade, interessado apenas sexualmente na menina bonitinha e novinha do site, o que, considerando os resultados obtidos, e o fato de ele não ter se interessado por Mônica, que tinha o mesmo perfil psicológico, era muito provavelmente verdade. Mas ele também podia ser um viúvo, um divorciado, um solitário cansado de sua condição. Uma pessoa que nunca amou, ou que já amou e perdeu – porque nesse caso, o dilema não é nem um pouco importante – e que agora estava realmente tentando algo novo. Na minha mente, ele era uma figura bem clara: alguém que passa suas noites de final de semana viajando pelas páginas do Par Perfeito, sozinho em casa, torcendo por uma resposta de alguém e por um contato virtual que viesse a se tornar real. Como muitas outras pessoas. Eu não tinha como saber a verdade, mas, de qualquer maneira, não estava disposto a arriscar.

 

Foi graças a Paulo que minha pesquisa tomou os rumos estritamente numéricos que a caracterizaram em sua versão final. Após sua mensagem, levei meu conflito à professora, cheguei a trancar a disciplina e desisti definitivamente do projeto. No entanto, após os resultados parciais obtidos com uma semana de observação – que, nessa altura do campeonato, considerando que não estava sequer inscrito na matéria, era mais “curiosidade” do que “observação científica” propriamente dita –, que se revelaram muito interessantes, optei por levar o projeto adiante, mas considerando as mensagens apenas quantitativamente, e não qualitativamente. Dessa maneira, em nenhum momento interagi com qualquer um dos mais de cem interessados que se manifestaram pelas duas mulheres no site. O que, acredito acabou se tornando um diferencial da minha matéria.

 

 

Entre a escassez e o excesso

 

Os dias de pesquisa, ainda que sem a interação que outros participantes do projeto vivenciaram e que muito provavelmente rechearam a experiência de momentos mais chocantes ou divertidos, foram ao mesmo tempo engraçados e frustrantes. E foi justamente esse conflito de reações que me fez retomar o projeto uma semana após ter desistido dele completamente.

 

Isso porque, a cada final de dia, quando (admito, ansiosamente) abria a caixa de mensagens de cada uma das mulheres, eu achava a situação cada vez mais engraçada e, ao mesmo tempo, mais revoltante. Em uma semana, Maryana já tinha recebido mais de 60 mensagens, ao passo que Mônica tinha recebido... duas. E essa foi justamente a medida de e-mails de cada uma das mulheres: para cada mensagem que Mônica recebeu, Maryana recebia 20.

 

É engraçado, porque, por mais que você tente não fazer julgamentos antecipados, a discrepância entre o volume de mensagens recebidos pelas duas, justificada apenas por motivos estéticos, causa uma certa revolta. É engraçado, e um pouco “viciante” chegar em casa e ver os números de uma aumentando exponencialmente. Mas é absolutamente frustrante ver a realidade de uma pessoa menos afortunada em termos de beleza. É o tipo de verdade que, quando exposta, nos faz colocar em cheque todo um conjunto de valores dominantes do mundo em que vivemos. (Não que esses resultados sejam exatamente alguma novidade, mas quando concretizados e vistos de tão perto, se tornam ainda mais evidentes, e têm seus efeitos ampliados...)

 

O rumo da pesquisa foi constante durante o período da avaliação: Maryana recebia várias mensagens por dia; Mônica apenas uma ou duas por semana. E, nesse ritmo, me vi pensando em Paulo novamente... Seria ele mais um entre as dezenas de “babacas” (a essa altura, qualquer senso de formalismo científico, de objetividade e de imparcialidade já haviam me abandonado, e eu já começara a julgar todos os participantes da pesquisa ) que estavam cadastrados apenas atrás de sexo, ou, genuinamente, uma pessoa que viu em Maryana um potencial para um relacionamento sério? Em todo o tempo de pesquisa, essa foi a única vez que tive que lutar para controlar a vontade de enviar uma mensagem de volta...

 

 

Resultados (in)conclusivos (?)

 

Os dois perfis ficaram ativos por exatamente 20 dias, até que o de Maryana foi arbitrariamente deletado da página. Mas, nesse tempo, de um total de 118 mensagens eletrônicas recebidas pelas duas, 112 foram para Maryana, enquanto apenas 6 foram direcionadas a Mônica. Considerando que as mulheres tinham a mesma “personalidade virtual”, e ambas estavam registradas no mesmo site, isso quer dizer que 95% dos visitantes da página que utilizam praticamente os mesmos critérios de busca na hora de procurar uma parceira no site ou “julgam o livro pela capa” ou preferem beleza em vez de independência financeira e intelectual.

 

Os resultados obtidos indicam claramente que uma pessoa de beleza superior, no mundo virtual, ainda que vinda de uma classe social baixa, tem possibilidades maiores (mas não necessariamente melhores, já que isso só poderia ser determinado se houvesse ocorrido algum tipo de interação entre as mulheres e seus potencias parceiros) de encontrar pretendentes, levando vantagem até mesmo sobre outra pessoa mais rica. Maryana podia optar entre mais velhos e mais jovens, ricos e pobres, bonitos e feios; Mônica estava fadada às poucas opções e à conformidade com a literalmente meia dúzia de gatos pingados que se interessou por seu perfil. Nesse sentido, é interessante também observar que houve apenas três coincidências entre os visitantes dos dois perfis, o que quer dizer que apenas três pessoas, das 118 que enviaram mensagens, basearam sua escolha em critérios de personalidade. 112 pessoas preferiram beleza, e apenas três pautaram sua decisão em aspectos financeiros.

 

Os perfis dos visitantes também eram completamente diferentes nos casos de Mônica e Maryana. As duas tinham o tipo de conta gratuito do site, dispondo apenas das configurações mais básicas, de modo que só eram acessíveis as mensagens de usuários que tivessem contas Premium, com mais recursos, pelas quais se paga um preço bem alto. No caso de Mônica, foi possível ler quatro de suas seis mensagens, ou seja, 67% do total; entre os pretendentes de Maryana, apenas 14 dispunham de contas Premium – 12,5% de seus e-mails. Isso é bastante revelador quanto ao nível social de cada uma dessas pessoas, bem como seus limites, possibilidades e perspectivas de relacionamentos no mundo real – já que alguns parecem depositar, sob a forma de reais e centavos, todas as suas esperanças amorosas no Par Perfeito.

 

Isso é ainda mais impressionante quando se leva em conta a duração de cada interação virtual, e a noção que se tem de um “encontro romântico” no mundo real caso duas pessoas que se conheçam no site resolvam se encontrar. Levando em consideração que uma boa conversa no chat do Par Perfeito – e por “boa” entenda-se uma interação que possibilite o mínimo conhecimento de um pretendente e motive a futuras conversas –, bem como em qualquer outro site que se proponha a formar casais, deve durar, no mínimo, algo em torno de uma hora, Mônica passaria apenas duas horas por semana no computador com seus pretendes. Por outro lado, Maryana, que recebia, em média, quase seis e-mails diariamente, teria de passar um quarto de seus dias na frente do computador, interagindo com seus possíveis namorados. Supondo que ela dorme a média de 8 horas por dia, trabalha a jornada média de 8 horas diárias e gasta por volta de 2 horas com deslocamentos, asseio pessoal e alimentação, Maryana mal teria tempo para responder a todos os e-mails que recebeu, quanto mais para fazer qualquer outra coisa.

 

O mesmo vale para as interações, em um segundo momento, no mundo real: se Maryana decidisse se encontrar com todos os que lhe enviaram uma mensagem pelo site, e marcasse um encontro básico, envolvendo uma refeição e uma sessão de cinema – e que provavelmente seriam pagos pelos pretendentes – ela assistiria a 112 filmes (ou seja, mais 224 horas de um tempo que já lhe é bastante escasso) e comeria as três refeições do dia de graça por mais de 37 dias, quase o dobro do tempo que seu perfil esteve ativo no Par Perfeito.

 

Para Mônica, no entanto, a participação no site chega a ser um exercício de paciência e superação de problemas de auto-estima. Além de só receber seis mensagens, o Par Perfeito ainda indica quantas pessoas visualizaram seu perfil: até o último das duas foram 42 visitas, sendo que apenas um sétimo delas havia enviado uma mensagem. Isso quer dizer que 36 pessoas olharam o perfil de uma pessoa perfeitamente agradável e comum, e, apenas pela foto, já descartaram toda e qualquer possibilidade de uma interação virtual. Maryana, no entanto, contabilizou 127 visitas no mesmo período, três vezes mais, e recebeu mensagens de quase 90% dos visitantes. Mônica, com o perfil ativo por mais um mês, recebeu apenas mais três mensagens, totalizando nove e-mails em quase dois meses de pesquisa.

 

Mas, para os que acharam os resultados do experimento negativos, também há boas notícias – ou ainda piores, aí depende se você é um tipo de pessoa que acha que o copo está meio cheio ou meio vazio. Como a diferença de perfil nas mulheres se resumia apenas a atributos físicos e renda mensal, a discussão obrigatoriamente tangenciava uma série de tópicos como bairrismos, profissões mais valorizadas no mercado, nível de escolaridade, entre outros. E, se para os otimistas isso pode significar que os freqüentadores desses sites de relacionamento não são tão superficiais, até porque já sabem de cara no que estão embarcando, abraçando os backgrounds sociais e culturais diferentes, para os eternos pessimistas, como disse meu amigo, isso quer dizer apenas uma coisa: “homem só pensa naquilo mesmo”.

 

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